RESISTENTES AO HIV
Quando
a epidemia de aids surgiu, por volta de 1980, não existiam drogas capazes de
controlar o vírus. Contrair o HIV era praticamente uma sentença de morte. A
doença apareceu primeiro em grupos de pessoas com alto número de parceiros sexuais,
como comunidades promíscuas de homossexuais e prostitutas. Logo nos primeiros
anos, os epidemiologistas descobriram que nessas comunidades havia um pequeno
número de pessoas que, apesar de terem dezenas ou centenas de parceiros sexuais
todos os anos, não contraíam a doença. Parecia que uma fração da humanidade era
resistente ao vírus. Descobrir por que essas pessoas são resistentes ao HIV era
extremamente importante. Para entrar nas células, o HIV se liga a uma proteína
que se chama CCR5. O que os cientistas acabaram descobrindo é que as pessoas
resistentes ao vírus têm um pedaço do gene da proteína CCR5 faltando. São 32
aminoácidos a menos, o suficiente para que a CCR5 fique na membrana da célula.
Sem a proteína, o vírus não entra e não se reproduz. Na Europa aproximadamente
10% da população tem as duas cópias do CCR5 alteradas (CCR5 32/ 32) e,
portanto, são resistentes ao vírus (apesar de existirem cepas do HIV que usam
outra proteína para entrar na célula e, portanto, essas pessoas não podem descuidar).
A prova final de que um CCR5 32/ 32 protegia a pessoa do HIV foi obtida faz dez
anos quando um paciente positivo para o HIV apareceu com leucemia. Esse
paciente fez um transplante de medula e, surpresa geral, o vírus HIV
desapareceu. Era a primeira pessoa que havia sido curada.
Quando
os cientistas foram examinar a medula que havia sido transplantada no corpo
desse paciente, descobriram que o doador era CCR5 32/ 32, uma pessoa resistente
ao HIV. Essa nova medula saudável não só curou o paciente da leucemia, mas
liquidou com o vírus. Duas doenças curadas com um único transplante.
Infelizmente essa técnica não pode ser usada para tratar muitos pacientes, pois
um transplante de medula envolve muitos riscos – na verdade, maiores que os
envolvidos no uso contínuo dos antirretrovirais, e só se justifica quando a
pessoa está com leucemia. Mas será que esse era um caso único? Essa semana foi
publicado um trabalho em que esse feito foi repetido em um paciente inglês. E
com o mesmo resultado. A nova medula CCR5 32/ 32 recebida por esse segundo
paciente o livrou da leucemia e do HIV. O truque funciona. Mas, se funciona,
não seria uma boa ideia modificar todas as pessoas para que elas fiquem
resistentes ao HIV? Foi essa a ideia de um cientista chinês. Em 2018, ele pegou
dois óvulos recém fecundados e com um truque genético transformou as duas
cópias do gene CCR5 em CCR5 32. Aí ele pegou esses embriões e implantou no
útero de uma mulher, como se faz em todos os procedimentos de fecundação in
vitro. Tiro e queda, nasceram duas meninas aparentemente saudáveis. Quando o
genoma delas foi sequenciado, demonstrou-se que eram CCR5 32/ 32, portanto
resistentes à aids. Escrito assim, você pode até pensar que foi uma boa ideia,
mas o fato é que o cientista foi suspenso da universidade, processado e talvez
tenha de cumprir tempo na prisão. O trabalho nunca foi publicado, mas quem viu
os dados diz que estão corretos. O cientista foi condenado por toda a
comunidade científica pois construiu os primeiros seres humanos com a linhagem
germinativa geneticamente modificada (os filhos dessas meninas vão herdar o
CCR5 32). O genoma dessas meninas foi alterado artificialmente, assim como
alteramos o da soja e do milho. Acontece que existe um acordo global que proíbe
a modificação de seres humanos. Além disso, o cientista fez a experiência sem
autorização do comitê de ética da universidade e aparentemente falsificou
documentos. Ele está frito, e com razão. Mas vamos esquecer por um momento a
desonestidade desse cientista. O fato é que aparentemente é possível alterar o
genoma de embriões e tornar as pessoas resistentes ao HIV. É claro que fazer
isso de maneira ilegal, sem as aprovações necessárias, e colocando em risco a
vida dessas crianças, é horrível. Mas foi feito. Agora eu pergunto a você: o
experimento foi feito ilegalmente, mas as duas meninas existem de fato. Você
acha que os dados desse experimento ilegal devem ser publicados e avaliados
pela comunidade científica ou devem ficar fora dos registros da ciência, como
se o experimento nunca tivesse sido feito?
MAIS INFORMAÇÕES:HIV-1 REMISSION
FOLLOWING CCR5 32/ 32 HAEMATOPOIE-
TIC STEM-CELL TRANSPLANTATION. NATU-
RE doi:10.1038/s41586-019-1027-4 (2019)
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